domingo, 9 de outubro de 2016

Do esgotamento se faz luta.





Do esgotamento se faz ‘luta’


Duas notícias, aparentemente antagônicas, povoaram minha cabeça e superfícies corporais neste domingo: de um lado a reportagem na Folha (que falha sempre) de São Paulo sobre a primeira dama do município intitulada “ Me sinto do povo, diz ‘Bia Doria’, a nova primeira-dama de SP”; a segunda, uma reportagem no jornal ‘O Globo’  trazia o seguinte enunciado: “ Um milhão de famílias entrará para as classes D e E até 2025” . Na primeira, Bia que se diz do povo “ não sai muito dos bairros onde vive e trabalha”; conhece pouco ou nada do minhocão, do baixo Augusta e das vicissitudes do povo de (e em) São Paulo, mas se diz ‘do povo’. A entrevista é nauseante, indignante e fui abatida por um enorme cansaço.  

Na outra ponta, na reportagem do jornal 'O Globo', conhecemos a família de Glória de Oliveira Brito e Anderson Ornelas que poderia ser de João e Ana, de Maria e Claúdia, de Fábio e Márcio, enfim: o povo. O que marcam essas famílias*: a diminuição de alguma renda ou a perda do emprego e/ou a entrada na fila assombrosa dos desempregados. Com isso, se vão coisas tidas - como privilégios - para muitos como: o curso de inglês dos filhos, o passeio semanal ao shopping com as crianças, a internet, a TV a cabo, o lanche extra, o cinema, o balé e o judô das crianças, entre tantas outras coisas. Essa reportagem,  não nauseante, mas profundamente tocante encheu meus olhos de lágrimas..meu cansaço aumentou...e uma voz, quase um mantra ( não tão bom assim), uma triste repetição ( que desejo que produza diferença) ressoa o tempo inteiro na minha cabeça e superfícies corporais: a constatação da  velocidade pela e na qual os direitos e conquistas sociais das últimas duas décadas têm sido violentamente agredidos, vilipendiados e usurpados. 

Talvez, a suposta distância entre as duas reportagens, visibilize muito mais proximidades que deixam contundente o horror desses tempos em terras brasis*. Olhei para o cansaço sentinte e pensei nos meus 42 anos em que me indigno com os processos de opressão e assimetrias; pensei em companheires** que atravessaram a ditadura militar neste país, pensei em companheires** antes destas/es..pensei nas/os que virão depois de nós..

 Aí, 'cá com meus botões desbotados', senti que cansaço pode ser um lugar onde as lutas fazem curvas,  o lugar, como nos diz Peter Pál Pelbart, do esgotamento..e ali onde tudo parece se esgotar..as resistências reerguem-se nas lutas cotidianas..Cansaço se faz luta. Amanhã é segunda-feira... Talvez tenha novos/outros cansaços, mas terei outras e não tanto tão novas assim: lutas.


Fátima Lima
Rio de Janeiro
09 de outubro de 2016.