Do
esgotamento se faz ‘luta’
Duas
notícias, aparentemente antagônicas, povoaram minha cabeça e superfícies corporais neste domingo: de um lado
a reportagem na Folha (que falha sempre) de São Paulo sobre a primeira dama do município
intitulada “ Me sinto do povo, diz ‘Bia Doria’, a nova primeira-dama de SP”; a
segunda, uma reportagem no jornal ‘O Globo’ trazia o seguinte enunciado: “ Um milhão de famílias
entrará para as classes D e E até 2025” . Na primeira, Bia que se diz do povo “
não sai muito dos bairros onde vive e trabalha”; conhece pouco ou nada do
minhocão, do baixo Augusta e das vicissitudes do povo de (e em) São Paulo, mas se
diz ‘do povo’. A entrevista é nauseante, indignante e fui abatida por um enorme
cansaço.
Na
outra ponta, na reportagem do jornal 'O Globo', conhecemos a família de Glória de
Oliveira Brito e Anderson Ornelas que poderia ser de João e Ana, de Maria e
Claúdia, de Fábio e Márcio, enfim: o povo. O que marcam essas famílias*: a diminuição
de alguma renda ou a perda do emprego e/ou a entrada na fila assombrosa dos
desempregados. Com isso, se vão coisas tidas - como privilégios - para muitos como:
o curso de inglês dos filhos, o passeio semanal ao shopping com as crianças, a
internet, a TV a cabo, o lanche extra, o cinema, o balé e o judô das crianças,
entre tantas outras coisas. Essa reportagem, não nauseante, mas profundamente tocante encheu meus olhos de lágrimas..meu cansaço aumentou...e uma voz, quase um
mantra ( não tão bom assim), uma triste repetição ( que desejo que produza
diferença) ressoa o tempo inteiro na minha cabeça e superfícies
corporais: a constatação da velocidade
pela e na qual os direitos e conquistas sociais das últimas duas décadas têm
sido violentamente agredidos, vilipendiados e usurpados.
Talvez, a
suposta distância entre as duas reportagens, visibilize muito mais proximidades
que deixam contundente o horror desses tempos em terras brasis*. Olhei para o cansaço
sentinte e pensei nos meus 42 anos em que me indigno com os processos de opressão e
assimetrias; pensei em companheires** que atravessaram a ditadura militar neste
país, pensei em companheires** antes destas/es..pensei nas/os que virão depois de
nós..
Aí, 'cá com meus botões desbotados', senti que cansaço pode ser um lugar onde as lutas fazem curvas, o lugar, como nos diz Peter Pál Pelbart, do
esgotamento..e ali onde tudo parece se esgotar..as resistências reerguem-se nas
lutas cotidianas..Cansaço se faz luta. Amanhã é segunda-feira... Talvez tenha
novos/outros cansaços, mas terei outras e não tanto tão novas assim: lutas.
Fátima Lima
Rio de Janeiro
09 de outubro de
2016.